quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Mensagem a leitores assassinos....

Em que medida somos nós, leitores, que destruímos a reputação de um livro? De que maneira leituras apressadas, indiferentes, superficiais, acabam por matar grandes livros? Sempre achei que o leitor não é só leitor, é co-autor dos livros que lê. Co-autor, mas pode ser também o assassino dos mesmos livros. Isso sem importar que sejam grandes livros, ou pequenos livros.
A propósito desses pensamentos, recordo o capítulo LXXI das Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Chama-se O senão do livro. É um dos muitos intervalos abertos por Machado para que seu narrador dialogue, francamente, diretamente, sem disfarces lamentáveis e sem gentilezas desnecessárias, com seu leitor.
Escreve Brás Cubas: “O maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem…”
Publicadas no ano de 1880 — portanto há 131 anos! —, as Memórias póstumas de Brás Cubas carregam uma mensagem que atinge em cheio o peito engravatado — ou decotado — do leitor contemporâneo. Não só a ele, talvez nem mesmo a ele, mas aos mitos que o cercam. Dizem (os editores, os jornalistas, os revisores, os especialistas) que o leitor de hoje tem pressa e, portanto, não suporta, não pode agüentar, a lentidão. Repetem os pensamentos de Brás Cubas.
Repetem a reflexão de Brás Cubas quando afirmam que o estilo deve ser direto, “cinematográfico”, capaz de sincronizar com o cinema, com a TV, com a internet. Em um mundo de imagens, as palavras devem se comportar como flashes. E mais nada. Nada de textos longos, nada de divagações, ou meditações, nenhuma reminiscência. Nenhum contorno, nenhuma reflexão, ou digressão, porque o leitor contemporâneo, sempre apressado, sempre pragmático, impecável e prático, interessado apenas em consumir o sangue das palavras, não dispõe de tempo, nem de energias, tampouco de paciência, para coisas assim.
Dizem os redatores modernos que o estilo deve ser reto, evitando-se assim o vacilar dos ébrios. Como se a realidade tivesse a retidão de uma bula de medicamentos, ou de uma receita de bolo. Como se a vida se desenrolasse, firme e elegante, como uma passadeira turca! O estilo deve ser claro (o leitor contemporâneo não tem paciência, nem tempo, para divagações, e além disso odeia pensar, não suporta o relativismo que define a arte). O leitor contemporâneo, dizem ainda, busca mensagens prontas, verdades simples e fechadas, dogmas se possível for. Lê — quando lê — em busca de um espelho brilhante e límpido, que reflita sem complicações a clareza da vida. Diz o leitor de hoje coisas assim e, sem saber, mas fazendo, repete as meditações de Brás Cubas.
O leitor contemporâneo, diz-se ainda, deseja regularidade e equilíbrio. Busca desempenho, preocupa-se, mais que tudo, com as performances! Ritmo regular, fluência inabalável, direção certeira. Clareza de propósitos, exemplos simples, passos firmes de executivo, ou de modelo de passarela. Ele quer ler, sim. Mas os escritores atrapalham tudo com seus livros rebuscados, cheios de pensamentos, de divagações e de dúvidas. Ele ama os livros, mas livros que tenham a firmeza de um manual e que o ajudem a saber como usá-lo, com que meios e para quais propósitos. Os escritores, mais uma vez, atrapalham tudo! Fazem tudo ao contrário!
Cento e trinta e um anos depois, ainda prefiro a idéia que Machado leva à boca de Brás Cubas: será que o problema não está em nós, leitores? Não seremos nós, tantas vezes, com nossa pressa, nossa exigência de regularidade e de clareza, nosso pragmatismo, assassinos de livros? Tantas e tantas vezes, o problema de livros, grandes livros, não estará em nós, seus leitores?
Os calendários ainda insistem em me convencer de que Machado de Assis foi um escritor do século 19. Que nada! A cada ano que passa, Machado se torna nosso inseparável contemporâneo. Ele pode ser aquele vizinho estranho e solene que você, olhando-o só de banda, sem dar grande atenção ao coitado, considera só um chato! Cuidado: ele sabe muito mais a seu respeito, inocente leitor, do que você mesmo.


Apologia dos defeitos

Ao telefone, em meio a lembranças de Clarice Lispector, de quem foi grande amiga, Lygia Fagundes Telles me passa uma frase da escritora que nos paralisa. Diz Clarice: “Até cortar os nossos defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe quais de nossos defeitos sustentam o edifício todo”. Levo-a a uma palestra que faço no Encontro Brasileiro Winnicott, realizado em Curitiba. Assim que a rememoro, o psicanalista Jamil Signorini, surpreso, me diz: “Mas eu também a citei em minha fala de ontem!”.

O que diz Clarice nessa frase de aparência enigmática, que parece se alastrar entre nós, como uma condenação? Que os nossos defeitos também são nossas qualidades. Somos feitos de coisas boas e de coisas más. Distingui-las depende sempre da perspectiva em que as observamos. O que é bom hoje pode ser péssimo amanhã. O que é bom para mim pode ser intolerável para você. O que me serve hoje, amanhã pode se tornar inútil. Feitos de coisas boas e más, nada devemos excluir do que somos.
A literatura é feita justamente disto: da aceitação do fracasso. Ainda pensando em Clarice, lembro, a propósito, de A hora estrela, seu romance de despedida, e de uma declaração do narrador, Rodrigo S. M.: “A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A verdade é irreconhecível. Portanto não existe? Não, para os homens não existe”. Para buscar a verdade, nada mais temos que as palavras. Mas as palavras são falhas, insuficientes, imprestáveis. O real não cabe nas palavras: ele transborda, escorre, o principal sempre se perde. No entanto, com o que mais podemos contar, nós, seres de linguagem? Este resto a que chamamos de realidade é tudo o que temos para viver.
Sugere Clarice (sempre ela). Estou diante de uma cadeira. Quero me apossar da cadeira, quero dizer o que ela é: então lhe dou um nome — “cadeira”. Mas, assim que pronuncio a palavra, “cadeira”, em vez de capturar o objeto, a palavra se interpõe entre nós. A palavra, ela dizia, é, na verdade, um obstáculo. Enquanto nos dá a impressão de posse, ela nos afasta das coisas. Nós a usamos como instrumento de acesso ao real, mas tudo o que ela faz é construir uma falsificação do real, a que chamamos de realidade, e na qual depositamos nossa fé. Nossas frágeis esperanças.
Clarice dizia coisas difíceis de pensar. Para muitos, não passava de uma louca. Outros a julgavam uma filósofa. Até uma bruxa. Foi, isso sim, uma grande escritora. Escrevia para livrar-se dos automatismos do pensamento, para pensar o impensável. O impensável, porém, não se pensa. Então, ficava perdida no meio do caminho, enrolada nas próprias palavras, aranha que não larga sua teia — que, no fim das contas, é ela mesma. Isso é a literatura: uma teia. Fios finíssimos que formam uma espécie de rede com o qual nos protegemos do mundo e através do qual nós o observamos. Fios que vêm não das Musas, ou dos Espíritos, mas de dentro do próprio escritor.
Por isso é difícil aceitar a idéia de que os defeitos são partes essenciais não só do que somos, mas do que escrevemos. Os jovens escritores buscam fórmulas, truques, regras. Lutam para chegar ao “bem escrever”. Não sabem viver sem uma boa coerção. Querem notas, aprovações, títulos. Nada disso interessa ao escritor. A literatura é o terreno da liberdade. Terra de ninguém, nela as qualidades e os defeitos têm o mesmo valor. Até porque é impossível separá-los.
Clarice dizia (está em A paixão segundo G. H.): “usamos a palavra como isca”. Ao dizer “cadeira”, lutamos para capturar uma cadeira. Mas, lançada a isca, e assim que ela envolve o objeto, ela o incorpora — como um predador, ela o devora. O objeto passa a ser a própria isca. A isca é o nome e ele, objeto, continua distante e impossível, continua muito longe de nós. Daí o sentimento de fracasso que envolve o ato da escrita.
Só entrego meus livros aos editores por absoluto cansaço. Por esgotamento. Só entrego quando não os suporto mais — então, concluo, chegou a hora! Estou sempre insatisfeito com o que escrevo. Agora mesmo estou insatisfeito: vim escrever sobre uma coisa, e estou escrevendo sobre outras. As palavras me arrastam. Elas me carregam e me submetem. Falei, outro dia, de Simone de Beauvoir, a escrava. Percebo que continuo a falar da mesma coisa: da literatura como uma forma de escravidão. A literatura? A vida.
Mas, então, onde está a liberdade de um escritor? A liberdade está em aceitar esses limites. Aceitar os fracassos, as impossibilidades e os defeitos. Incorporá-los (devorá-los). Como dizia Clarice: incluí-los, fazer algo deles. Sem eles, sem tudo o que temos de pior e de insuportável, talvez seja impossível escrever. Pode-se “escrevinhar” — mas isso já é outra coisa. Daí a literatura não ser para qualquer um. Isso quer dizer que a literatura se destina às elites? Não! Quer dizer que ela exige coragem.

JOSÉ CASTELLO
 
É escritor e jornalista.

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